Esta entrevista foi elaborada por mim à cerca de 4 ou 5 anos atrás, por e-mail, quando iniciei meu contato com Vandermark, onde descobrí uma pessoa antenciosa, simpática e simples. Eu já tinha publicado esta entrevista no blog Farofa Moderna, mas não ainda neste blog. Em tempo de sua primeira (que seja a primeira de muitas) vinda ao Brasil, republico-a para quem quiser conhecer mais um pouco deste talentoso artísta:
1. Quando você começou a tocar já pensava em fazer esse tipo de música que faz agora?
Eu cresci ouvindo todos os tipos de música, meu pai em particular sempre deixava o estéreo ligado quando estava em casa – na maior parte do tempo jazz mainstream (Monk, Ellington, Miles Davis, etc.), e música clássica (Stravinsky, Bach), alguma coisa da Mototwn, bossa, Frank Sinatra e Sly & the Family Stone. Depois de trabalhar no trompete por alguns anos eu percebi que não conseguiria tocá-lo bem o suficiente pra fazer algo sério e mudei pro saxofone tenor aos 16 anos. De primeira tentei compor minhas próprias músicas e tocá-las com um grupo que eu organizei com meus colegas na banda do colégio. Mas a coisa começou a andar quando meu pai me apresentou o álbum "Tenor" do Joe McPhee. Nessa época (eu tinha uns 17) seu interesse em jazz estava avançando pra fora do mainstream, meu pai estava escutando mais free jazz dos anos 60 (Ornette, Shepp) e assistindo mais shows de grupos contemporâneos em Boston (Joe Morris, The Fringe -com George Garzone, Bob Guilotti, John Lockwood; Shock Exchange, liderado por Dave Bryant), assim como a música mais ousada que vinha pra cidade (Don Cherry, Shepp, The Art Ensemble of Chicago, Sam Rivers). Como sempre fazia, meu pai me levava aos concertos, mas eu tinha problemas em assimilar as idéias desses artistas mais ousados, até que ouvi "Tenor". De alguma maneira aquele álbum colocava os sons mais abstratos da música improvisada em uma construção melódica que eu conseguia seguir – foi uma epifania. Assim que ouvi a música de McPhee eu disse pra mim mesmo: é isso que eu quero fazer.
2. Quando e como você formou seu primeiro grupo? Entre os muitos grupos dos quais você participa atualmente, algum recebe atenção especial?
Meu primeiro grupo sério foi organizado enquanto eu estava em Montreal estudando Cinema e Comunicação na Universidade McGill. Era um trio chamado Fourth Stream, meio que moldado no trabalho de Ornette Coleman e Albert Ayler. Hoje em dia, ao contrário do que muita gente possa pensar, todos os grupos com quais eu trabalho tem peso igual quando eu estou envolvido. Por muitos anos o Vandermark 5 foi o mais ativo e um centro crucial pro meu desenvolvimento como improvisador e compositor, mas o trabalho que fiz com outros conjuntos, usem eles composições ou pura improvisação são igualmente importantes pra mim. Cada um me apresenta uma série de parâmetros e personalidades diferentes, me impulsionando a desenvolver diferentes aspectos da minha música. Eu não conseguiria me dedicar a só uma banda, existem muitas idéias aí fora pra serem exploradas, e trabalhar com especialistas em seus campos específicos é a melhor maneira de aprender. Além do que, por exemplo, tocar com Paul Lytton e Paul Lovens teve a mesma importância que tocar com Hamid Drake e Paal Nilssen-Love, mesmo eles sendo todos bateristas muito diferentes entre si.
3. No Vandermark 5 cada música é dedicada a alguém. Você inventou isso ao mesmo tempo em que começou o grupo? Como é processo de composição?
Eu venho tentando reconhecer o impacto de outros músicos, artistas, cineastas, escritores e amigos por muitos anos. Dedicar as peças a eles é um jeito de mandar uma carta de agradecimento, mais do que indicar que a peça é baseada em compor no estilo musical deles.Meu enfoque na hora de compor é tentar e encontrar a identidade específica de cada peça baseada nos materiais que eu crio e nos músicos que estarão interpretando. Eu espero que cada peça seja singular, usando diferentes técnicas quando necessárias pra chegar na música pronta. Eu componho pros indivíduos que estarão trabalhando em um conjunto específico. Então, por exemplo, a música da Territory Band é escrita pros onze ou mais músicos que naquele grupo – eu não poderia pegar essas partituras e dá-las pra nenhum outro instrumentista e esperar que a música funcionasse corretamente.
4. Você segue algum tipo de filosofia pra fazer sua música? Você concorda que o artista deva catalizar alguma mudança dentro da sociedade?
Se tiver uma filosofia é que eu quero que minha música seja permitida ser livre, deixá-la trabalhar com parâmetros abertos pra que eu possa usar quaisquer fontes que eu sinta serem apropriadas pra levar a música a um espaço de improvisação e composição que é independente e original. Isso significa que é aceitável que alguns ouvintes não irão gostar de todo meu trabalho, preferindo um grupo ou sensibilidade no meu jeito de tocar em tal formação. Mas eu me recuso a ser colocado em uma série de caixas ditando o que eu posso ou não fazer de um ponto de vista musical. Gosto é uma coisa, mas a necessidade da busca e o processo da arte são outras. Eu acho que artistas criam mudanças na sociedade, mas essa é uma revolução que acontece em uma pessoa de cada vez. Sendo expostos a idéias criativas, seja através de música, pintura, literatura, etc., as pessoas estão convidadas a ter experiências da realidade de maneiras diferentes, a considerarem outras possibilidades além das apresentadas a eles todos os dias na mídia de massa. Se eles abraçam essas considerações é quase impossível que seu enfoque cultural em relação à política e com sua sociedade não seja afetado. Essa mudança pode ser lenta, mas é verdadeira pro indivíduo e sua experiência.
5. Existe alguma diferença entre o Ken Vandermark artista e o Ken Vandermark cidadão? Se isso acontece, como um influencia o outro?
Eu não tenho como fazer essa separação. Minha vida informa minha música, e minha música informa minha vida. Sem meu trabalho eu não conheceria o mundo como conheço hoje, e essas experiências mudaram completamente a maneira que eu enxergo o que toco. A música pôs meu pé na estrada, e as coisas que vejo e ouço quando estou viajando, experiências musicais ou não, me levaram a novas maneiras de pensar sobre o que faço. Minhas experiências com e através da música me obrigam a re-investigar meu mundo constantemente, artística e socialmente.
6. Você acredita que ainda há algo novo a ser feito na música, ou nós vamos sempre estar descobrindo algo do passado?
Sem dúvida: sempre há algo novo a ser criado nas artes. Eu acho que a chave pra isso é ser verdadeiro em relação ao seu período cultural. Tudo que é feito hoje em dia é influenciado pelos desenvolvimentos do passado, isso é impossível de evitar, e fingir que você pode permanecer inalterado pelo impacto da história é uma construção psicológica artificial. Porém é necessário enquanto artista fazer mais do que recriar o passado, isso é inútil criativamente. É preciso construir algo individual de seus recursos, e cada pessoa tem uma série de experiências diferentes que são integradas por suas histórias pessoais: um passado cultural, sua situação social presente, suas observações artísticas, etc. Às vezes a percepção e expressão individual é revolucionária, como no caso de Ornette Coleman ou Picasso, às vezes é simplesmente pessoal, como no caso de Stan Getz ou Max Beckmann.
7. Você acredita que a música de improvisação completou sua evolução ou isso é algo infinito, como um alfabeto, que possibilita novos sentidos para as letras que nós já temos?
Pros meus ouvidos e mente as possibilidades de improvisação são infinitas. Eu não acho que jazz ou música improvisada sejam estilos, eu acredito que é um método. Esse método tem uma coleção de ferramentas internacionais, linguagens e idéias que têm sido desenvolvidas ao longo do século XX e agora no século XXI. E quanto mais ferramentas um indivíduo desenvolve, mais ele pode se expressar espontaneamente através de música improvisada.
8. Você concorda com John Zorn quando ele declara que free jazz, improv e outras vanguardas musicais em geral não vão alcançar o grande público, mas que seu público se renova a cada geração mantendo mais ou menos o mesmo número de pessoas envolvidas?
Eu penso que os assuntos enfrentados pelos músicos de jazz e improvisação são múltiplos. Primeiro, eu acredito que a mídia mainstream especializada em jazz colocou a forma artística em um gueto musical elitista, ajudando a removê-la da percepção ou interesse da população em geral. Em segundo lugar, a maior parte dessa música é desafiadora para os músicos e, portanto, pro público. A maioria da população não é interessada de verdade em música, eles estão interessados em um papel de parede sonoro – algo bom pra ter por perto desde que não interrompa seu ambiente ou desafie suas expectativas. Estou interessado em encontrar uma maneira de quebrar a noção pré-concebida, desenvolvida pela mídia e por muitos músicos que é impossível que a música improvisada encontre um lugar real na sociedade contemporânea. A questão é encontrar fãs de música. Esse é o público que vai aos meus shows na América do Norte e na Europa, pessoas entre 20 e 40 anos que ouvem todo tipo de música: jazz, rock, reggae, funk, hip hop, música erudita, etc. e são essas pessoas que os músicos de improvisação precisam encontrar e tocar para, não para o fã elitista de jazz que já tem uma definição de como a arte pode ou não ser.
9. Quando você tem tempo, o que costuma ouvir?
Praticamente tudo em que consigo por minhas mãos. Eu tenho milhares de cds na minha coleção. Tem de tudo, de Albert Ayler a Hank Williams. Se estiver numa festa eu gosto de escutar funk antigo, reggae e rock (James Brown, Charles Wright, Stax, Funkadelic, Curtis Mayfield, Sly & the Family Stone, Lee Perry, King Tubby, Jackie Mitto, Studio One, The Ex, Shellac, Wire, Public Enemy, Fugazi); se eu estou fazendo uma audição é bem variado (Mississippi Fred Mc Dowell, Morton Feldman, Miles Davis, Duke Ellington, Iannis Xenakis, Peter Brotzmann, Evan Parker, Ornette Coleman, J.S. Bach, Albert Ayler, Anthony Braxton, música étnica do mundo todo, Charles Mingus…).
10. A pergunta inevitável. Você conhece alguma coisa de música brasileira? O que?
Meu conhecimento de música brasileira é muito limitado infelizmente. Mas alguns de meus discos favoritos de seu país são: o disco de João Gilberto que leva seu nome, "África Brasil" de Jorge Ben, "Domingo" de Gal Costa e Caetano Veloso, "Tropicália ou Panis Et Circensis".Por favor, faça algumas sugestões!
Entrevista por Rubens Akira, tradução por André Maleronka