quinta-feira, outubro 09, 2008

Reacionarismo da juventude

Carla Bley, pianista e compositora que se apresenta por estes tempos em São Paulo fez um comentário sobre o panorama geral do Jazz contemporâneo. Ela percebeu que está mais conservador, diferente dos anos 60, período que ela participou ativamente, uma época de avanços, experimentações, de mudanças em busca do novo. E isso vem de uma pessoa de cerca de 70 anos de idade...
Bem, vamos analisar o que acontece especificamente na cidade de São Paulo, lugar em que tenho residência e posso acompanhar mais de perto. Mesmo eu não sendo um ancião, presenciei a transição do analógico para o digital, o vinil para o cd, os PC's que usavam um gravador k7 acoplado, os disquetes flexíveis que não comportavam mais do que poucos kbytes até chegar aos minúsculos pendrives do tamanho de um chaveiro que comportam gigabytes, do console Atari 2600 aos Xbox e Wii.
Na música e sua cultura em volta, podemos ver dois segmentos distintos:
1. Os que aderiram completamente à urgência da tecnolgia digital, só ouvem música eletrônica feita por sintetizadores, samplers, geralmente em formato mp3, mp4. Decretaram a morte da música acústica ou a tratam como artefato de museu. Mas ironicamente os artístas que essas pessoas apreciam, cada vez mais buscam elementos do passado para comporem a música do futuro, seja com equipamentos "vintage" como orgãos que usam válvulas, toca-discos de vinil, gravadores de fita entre muitos outros equipamentos ultrapassados. Apesar desta negação extrema com o passado, (que chega a ser um tanto prejudicial, pois esta ligação é necessária, pois o passado é a estrutura do que somos, desde que isso não afete negativamente o contemporâneo) é mais coerente que o outro segmento;
2. Os que nasceram com a oportunidade de usufruir as comodidades da era digital, que puderam pelo menos jogar um videogame de 64 bits e não um aglomerado de pixels de baixa definição que representavam algum objeto ou personagem. Muitos deles sonham e idealizam uma época que não vivenciaram e até seus pais não tinham constituído família ou estavam na idade adulta. Quem quer reviver os anos 60 no Brasil? Repressão, carência de informação, etc. Podia até ser que antes era melhor por haver menos poluição, menos carros, menor população, mas a miséria, pobreza e violência existiam em suas devidas proporções, para os ricos é óbvio que sempre gozaram de situação melhor, mas pelas sua atitudes, o que plantaram ao seu redor, estão colhendo no séc.XXI os seus frutos: condomínios fechados com cercas eletrificadas, carros blindados, trânsito insuportável, clima alterado, etc. Mas muita coisa está visivelmente melhor que antes, temos acesso simultâneo com o que acontece no mundo inteiro, não é qualquer gripe que vai matar alguém, entre muitas outras melhorias.
Mas o grande problema não é um saudosismo de uma época em que não se vivenciou, mas o atrofiamento intelectual da juventude atual. Muitos destes jovens não querem ser surpreendidos em muitos aspectos, querem estar em alguma situação que seja até previsível, que tenham controle da situação e isso logo na música. Muitos perderam o senso de analisar a arte musical de maneira ampla. Criou-se o estigma de que se um artísta tem o pleno domínio de seu instrumento de expresão e suas idéias são expressas de forma mais complexa, isso significa que o artísta é um exibicionista. O virtusismo se distorceu em uma coisa nociva. Já ouví pessoas, inclusive músicos dizerem que solo é uma coisa ruim. Ora, estes mesmos músicos que disseram isso, gostam de John Coltrane e Cecil Taylor... Coltrane disse que quando começava a solar não conseguia parar e a música ultrapassava os 20 minutos, Cecil Taylor gravou vários discos solo. Roscoe Mitchell quando esteve em São Paulo anos atrás com o Art Ensemble Of Chicago, fez um solo com a técnica de respiração circular por cerca de 20 minutos, seria ele um exibicionista egocêntrico?
Seria mais sensato dizer que certos artístas usam o solo para se exibir e não integrá-lo à composição. Esse lance de julgar é complicado, pois cedo ou tarde, quem julga e muitas vezes julga erroneamente, acaba pecando, e não há quem se safe disto. Tem pessoas que adoram as batalhas de MC's, elogiam suas habilidades de rima, muitas destas batalhas carregam sim, exibicionismo e vaidade, mas se o Steve Vai fizer um mísero solo, ele é o mais exibido de todos... Mas há quem diga que é diferente...

3 comentários:

Vagner Pitta disse...

...


bem, estamos de volta na mesma questão que falamos a alguns dias atrás lá no farofa:

A Carla Bley disse que sua época, nos anos 60, foi a mais excitante e que hoje é muito mais conservador. Mas esse "reacionarismo" dos jovens não é um retrocesso, mas um ponto de partida para reestruturar as mais recentes inovações dentro do jazz e da música instrumental de forma lúcida e cada vez menos abstrata.

veja como aconteceu nos tempos antigos:

veio o bebop com toda aquela complexidade, aquela coisa de tocar intricando, tocar rápido e tal...

a vanguarda daquela época que seguiu após o bebop foi a geração de Lennie Tristano, Max Roach, Miles Davis, Chet Baker e Art Blakey que eram os representantes do Cool Jazz e hard bop, ou seja, foi uma reação aos instrincamentos do bebop: aí surgiu uma música aparentemente mais simples de se tocar, sem aquela coisa de tocar rápido demais, mas, ainda assim, o hard bop foi uma espécie de ponto de partida que permitiu aos músicos negros criar suas próprias composições e harmonias, usando muito blues, gospel e funky...ou seja, um estilo que surgiu aparentemente mais simples veio, na verdade, para somar àquilo que já tinha sido inventado...foi um avanço, enfim.


a mesma coisa passa a acontecer a partir da década de 80 até hoje: o campo do Free Jazz e Avant-Garde chegou a um nível de experimentação tão distante da identidade do Jazz em finais da década de 70, que a alternativa seguinte não seria outra a não ser essa volta às tradições. Essa volta não pode ser entendida como um retrocesso negativo, mas sim um novo ponto de partida, a partir do qual serão popularizadas as técnicas do mundo pós-moderno de forma que atinja as pessoas sem, contudo, distanciar-se da indentidade característica do Jazz. Daí temos Wynton Marsalis como o ponto de partida, depois vem Branford e Roy Hargrove partindo do Hard Bop para acomodar o hip hop; temos ainda Dave Douglas voltando aos standards do passado para mostrar com eles alguma coisa do Free Jazz; temos também John Zorn usando a música erudita e as tradicões judaicas; temos James Carter que toca seus saxofones com uma articulação e sonoridade baseada no avant-garde mas dentro da estética mainstream; temos Ken Vandermark que também parte através do Free Jazz e usa o post-bop e o rock em composições escritas, temos Charles Gayle e Ivo Perelman que trabalham baseado no Free Jazz sessentista e etc...ou seja, a própria vanguarda de hoje é reacionária. E talvez seja não por que quer, mas porque foi e é necessário, dado o ponto em que as coisa caminhavam...é necessário reformular, atualizar e popularizar as invenções passadas.

Eu mesmo considero o Free Jazz como algo tão ultrapassado como o hard bop, já que já um estilo que faz mais de 40 anos de idade. Assim como também acho que o rótulo Vanguarda não se aplica hoje em dia. Quanto aos progressitas do Jazz eles sempre existirão: os progressitas do Jazz contemporâneo são aqueles que prima pela composição escrita tentando reestruturar o passado de uma forma moderna, ou seja, englobando vários elementos novos e antigos como música eletrônica, free jazz, funk e rock, world music e música erudita. Dave Douglas, Vijay Iyer, Ken Vandermark, Roy Hargrove, Esbjorn Svensson, Branford Marsalis, Matthew Shipp, Steffon Harris, Jason Moran, Ben Allison e os músicos do Jazz Collective Composers são todos músicos que atualizam o passado usando, através de escrita arrojada, alguns elementos do mundo contemporâneo: como efeitos eletrônicos, por exemplo. Wynton Marsalis, os quais dizem que é conservador e reacionário, já foi citado pelos estudiosos como o maior inovador da escrita jazzística, como se já não bastasse todo o barulho que ele causou na década de 80 e 90: essa questão do jazz querer se equiparar com a complexidade da música erudita é uma das metas dos músicos contemporâneos. Temos um John Zorn escrevendo peças de jazz como se fosse para um conjunto de câmera. Temos um Wynton Marsalis que escreveu peças gigantescas como All Rise que é uma verdadeiro jazz sinfônico do mesmo porte que algumas das dificílimas obras de de Stravinsky.


é preciso analisar o momento de hoje além das releituras a standards...a volta ao passado tbm gera muitas coisas novas!

paz e graça!!!


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Unknown disse...

Certo Pitta, mas o que eu realmente quis dizer é o ponto negativo dos ouvintes, não dos artístas. Como eu exemplifiquei no post sobre o Sonny Rollins, muitos jovens ouvintes querem cristalizá-lo aos tempos do The Bridge, Saxophone Colossus, etc, sendo que ele esteve prudutivo o tempo todo com trabalhos interessantes. E isso muitas vezes é do ponto de vista estético, da forma mais superficial possível, como a capa do disco.
Quanto ao Free Jazz, respeito sua opinião mas eu não vejo desta forma, pois eu só vejo como mais um método, que ampliou o campo rítmico, melódico e harmônico do Jazz de New Orleans. Se torna ultrapassado se partir dos mesmos preceitos de Ornette e algumas abordagens de Cecil. Vandermark e Mathew Shipp por exemplo, são expoentes do Free Jazz como método atemporal, e posso dizer mais sobre o Ken, que o que ele busca não é uma vanguarda musical e sim novas idéias como artísta, busca por novidades em um âmbito pessoal como artísta, não criar um novo movimento, uma ruptura, aliás, os nossos amigos do Art Ensemble são os os melhores exemplos disso, não? Transformam o passado musical de uma maneira que ele passa a não existir, se tornando contemporâneo como elemento naturalmente incorporado e tornando o "futuro", apenas a verdadeira dimensão do presente.
Aí é diferente do que nosso amado Mestre diz sobre as coisas velhas se passaram e tudo se fez novo.
Paz e graça de Cristo!

Vagner Pitta disse...

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sim, entendi sua crítica aos ouvintes ditos reacionários...tanto que eu, com tua ajuda e a de outros amigos, insisto em mostrar no meu blog artistas do jazz atual ou músicos das décadas passadas que ficaram no ostracismo (como músicos de free jazz, por exemplo), ao invés de ficar postando clássicos que todo mundo já conhece e insiste em continuar ouvindo...

o meu desejo - e acho que deve ser a meta dos músicos mais ousados - é que o Jazz, bem como seus músicos a apreciadores, seguissem sem preonceitos ao passado e muito menos às experimentações do presente, ou seja, adotassem aquilo que conhecemos como atemporalidade. Na música erudita essa atemporalidade é o fundamento que explica por que ela é tão antiga, e tão bem valorizada enquanto arte, e por que nunca sai de cena: simplesmente por que músicos e maestros experimentais como Pierre Boulez ou Luciano Bério (que dizem ter sido um grande estudioso da eletroacústica) nunca tiveram preconceito em reger peças de Bach ou Mozart, ou se usar elementos antigos em suas composições. Na música erudita não tem essa de "velho" e "novo": a violinista Anne Shophie-Mutter toca concertos tanto de Mozart quanto de compositores contemporâneos como Penderecki.

Da mesma forma os ouvintes de música erudita mais antenados ouvem tanto Beethoven como também podem ouvir Stravinsky, Schoenberg ou Boulez

o jazz precisa ser tomado por essa atemporalidade: eu mesmo, dependendo do momento, ouço New Orleans, jazz vocal, Free Jazz, música erudita, hard bop, big bands...além de estar pesquisando algo sobre música instrumental brasileira ou músicas negras como soul, funk e hip hop relacionado ao jazz

acho que todos os estilos tem a sua época de extase para só depois se tornarem ferramentas de criação: de modo que mesmo baseado no new orleans que é antigo, ou no bebop, free jazz, fusion e agora o M-Base, sempre será possível criar arranjos novos.


essa de ficar ouvindo só um estilo ou ficar ouvindo os mesmos discos dos mesmos artistas como kind of Blue, Chet e Miles, Sonny Rollins e seus Tenor Madness e Saxophone colossus...aaf sai fora: prefiro arriscar ouvindo coisas que ainda não ouví, sendo elas boas ou ruins...


abraços

 
 
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